Alergia ao Papa Francisco: o sintoma da incoerência de alguns círculos católicos
Quando o Papa Francisco declarou que a maioria dos
matrimônios católicos não é válida, ele fez um diagnóstico que em nada modifica
uma vírgula que seja da doutrina católica. No entanto, o comentário se tornou
mais um dos vários que provocaram reações histéricas entre certo número de
fiéis.
O fenômeno é no mínimo curioso. Quem se der ao trabalho
de ler a declaração completa – em vez de citações tiradas de contexto ou
francamente truncadas – constatará que a afirmação do pontífice está em
consonância com a doutrina da Igreja sobre o sacramento do matrimônio: o
matrimônio é indissolúvel desde que seja válido sacramentalmente, o que exige
condições bastante claras.
É por isso, aliás, que, em alguns casos, a Igreja
reconhece a posteriori que certos casamentos que se supunham válidos não o eram
na realidade. Trata-se do reconhecimento de nulidade do matrimônio – e não da
“anulação do matrimônio”, coisa que não existe na Igreja.
A declaração do papa sobre o estado de imaturidade afetiva,
psicológica e espiritual de numerosos católicos não é, infelizmente, nem um
pouco surpreendente para quem abre os olhos à realidade. E se isto não fosse
verdade, não teríamos tantos debates sobre a situação dos divorciados em
segunda união.
No entanto, quando o papa diz em alto e bom som aquilo
que todo o mundo já sabia (e que poucos se atreviam a manifestar com clareza),
certos católicos se ofendem e outros expressam desaprovação com expedita
“surpresa”.
Mas será que não é ainda mais surpreendente essa
“alergia” que certo número de católicos tem à sinceridade do Papa Francisco?
Quando ele declara que “a Igreja tem que pedir perdão às
pessoas gays a quem ofendeu”, ele não está fazendo nada além de recordar o
Evangelho: está convidando à conversão aqueles que não se comportaram de forma
caridosa para com as pessoas homossexuais – e ele mesmo se inclui no lote.
Por outro lado, nada muda na posição da Igreja a
propósito das práticas homossexuais. Mesmo assim, certos católicos se dizem
“desestabilizados”. Ora, mas não é precisamente a reação deles o que
desestabiliza?
O que há de “desestabilizador” em pregar aos católicos a
conversão do coração? O que há de “desestabilizador” em dizer a eles que, se
ofenderam um irmão ou irmã, devem pedir-les perdão?
As palavras do papa Francisco correspondem ao espírito e
ao sentido do Evangelho. Recriminá-lo, quando se é supostamente adepto da
religião do amor, é uma contradição patente e grotesca – mas, acima disso, é
indício de que algo que não anda bem, pelo menos em certos ambientes, já que o
ceticismo contra o Papa Francisco está longe de ser generalizado.
As reações histéricas de alguns setores católicos
Certos círculos católicos se empenham em criticar o papa
em nome de uma suposta identidade católica que eles confundem com a soma de
maus hábitos, visões parciais e preconceitos herdados da família ou do entorno.
Esta herança eles confundem com o depósito da fé – e acusam o papa de querer
liquidá-la.
Não lhe perdoam o fato de nos recordar que a única
identidade do cristão é a de seguir a Cristo e que isto exige, com muita
frequência, mudar muita coisa em si mesmo e ao redor de si mesmo, rompendo,
inclusive, com a “lealdade” a certos entornos.
Há católicos que se recusam, “por herança”, a
transformar-se em cristãos por escolha. Insistem em fazer sua rigidez e dureza
de coração se passar por fidelidade ao magistério da Igreja.
Daí o fenômeno de que tais católicos se remetam mais ao
pensamento de Charles Maurras e Pierre Gattaz, por exemplo, do que ao
pensamento dos Padres da Igreja. Daí o absurdo de que tais católicos se achem
mais católicos que o próprio Papa, a ponto de pretenderem dar ao Papa lições de
catolicismo.
Com o pretexto de denunciar erros bem reais da parcela do
clero e do episcopado que usou o Vaticano II para justificar suas próprias
fantasias pastorais, teológicas, litúrgicas e morais – em suma, sua própria
apostasia –, certos círculos católicos querem jogar responsabilidades sobre os
ombros de um Papa que de nada disso tem culpa.
Salta aos olhos de todos, menos deles mesmos, a
contradição patente entre o que dizem ser e o seu real comportamento de
protestantes que negam a autoridade intelectual, espiritual e moral do Papa.
Mas o mais absurdo desse tipo de comportamento é que eles
são deliberadamente ferinos e não se abstêm sequer de procedimentos desonestos
e maliciosos como insultos, calúnias, insinuações, citações tergiversadas ou
descontextualizadas, acusações sem provas e toda a gama de recursos típicos do
manipulador criminoso.
Todos esses comportamentos são o contrário do que Cristo
nos pediu: amar o próximo como a nós mesmos.
Quem se serve desses meios desonestos não rejeita apenas
a pressuposição de inocência do Papa Francisco, mas, acima de tudo, a própria
pressuposição da sua bondade.
São o perfeito contratestemunho para os não cristãos:
desalentam os bem intencionados e afugentam todo o resto.
Essa atitude traduz naqueles que a adotam uma profunda
malícia, indissociável de uma forma de orgulho que consiste em considerar-se
uma espécie de “conselho de administração” da Igreja – e ao Papa Francisco uma
espécie de “diretor de empresa”, que deve não só prestar contas regularmente
diante deles como, principalmente, satisfazê-los em tudo.
Acontece que a Igreja é fruto da vontade e do desígnio
expresso de Cristo e que o Papa é escolhido pelo Espírito Santo.
Como não podem destituí-lo, tentam consolar-se
questionando-o, como o fez o político francês conservador Alain Juppé ao dizer,
de Bento XVI, que ele “começava a ser um verdadeiro problema” e que vivia “em
situação de autismo total”.
A oposição ao Papa e
o desprezo pelo Evangelho
O que o Papa pede aos católicos é que sejam fiéis ao
Evangelho. Francisco nos põe em guarda contra o risco, ou contra a tentação, de
preferir defender o continente (a cultura cristã) a viver o conteúdo (Cristo).
O que alguns católicos não suportam é que o Papa lhes
recorde que Jesus Cristo não exige defensores, mas testemunhas, e não é a mesma
coisa.
O que esses “ateus piedosos” não suportam é que o Papa
diga em voz alta que a missão dos católicos não é recordar às massas ignorantes
as belezas da arte romana, mas anunciar-lhes a Boa Nova da Redenção por Jesus
Cristo, começando por viver eles mesmos em consonância com essa Boa Nova.
Outros o detestam porque ele recorda que a sua missão é
dar testemunho através da vida e da palavra de que Deus é o Deus do amor e que
só Ele pode satisfazer a aspiração do ser humano a ser amado.
E o que detestam acima de tudo é que o Papa Francisco
lhes recorde que esta responsabilidade cabe também a eles como batizados: eles
têm o dever da exemplaridade porque a santidade não é uma alternativa que
possam optar por não seguir; a santidade é a sua única vocação, a sua única
razão de ser e a condição para a sua salvação.
Há quem o odeie porque não querem entender que a fé
cristã é a fé em um Deus onipotente que decidiu operar a salvação da humanidade
tornando-se homem junto conosco. Prefeririam um Deus muçulmano, que lhes
ordenasse usar a força.
Aliás, a sua obsessão com o islã é o reflexo da sua
inveja e a expressão do seu pesar por não poderem exaltar a própria vontade de
poder, tal como aqueles muçulmanos que justificam a própria vontade de dominar
invocando a jihad.
Do mesmo modo que o amor nos torna inteligentes, a
maldade nos torna cegos. De tanto atribuir ao Papa o que ele nunca disse, os
inimigos do Papa Francisco se condenam a não entender nada.
Ao fazer um diagnóstico sem complacências sobre a
realidade de certos matrimônios celebrados meramente na forma, o Papa destacou
as consequências da apostasia e da frouxidão dos responsáveis do clero que
renunciaram a iluminar consciências quando as condições de validade para um
matrimônio sacramental não eram cumpridas.
Negando-se a escutar o que o Papa realmente diz e dando
preferência à calúnia, os católicos que desfrutam do próprio ódio ao Papa se
condenam a uma cegueira voluntária.
A histeria que o Papa Francisco desencadeia em alguns não
nos diz nada sobre o que o Papa de fato pensa e fala, mas nos ensina muito
sobre o estado interior dos seus detratores.
Deste ponto de vista, a alergia ao Papa Francisco é um
sintoma revelador de incoerências e infâmias em alguns círculos católicos e,
por isso mesmo, é uma boa notícia: as máscaras caem!
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